sexta-feira, 25 de março de 2011

Resenha: FERRO, Marc. A Manipulação da História no Ensino e nos Meios de Comunicação. Tradução de Wladimir Araujo. São Paulo: IBRASA. 1983. 310 p.


“Saiba o leitor que senti alegria e verdadeira paixão ao planejar e escrever esse livro. Que ele te ajude, amigo, como a mim, a compreender melhor o teu próximo.” 

Marc Ferro, Historiador Francês 

Fabio Antonio Costa 
Mestrando e Especializando pela PUC-SP 
fabioantoniocosta@hotmail.com 

 Produzida em uma época que a História e outras disciplinas estavam reformulando suas bases de pesquisa, a obra A Manipulação da História no Ensino e nos Meios de Comunicação, do historiador francês Marc Ferro , destaca-se por usar métodos de pesquisa na época pouco difundidos, como o cinema, uma especialidade de Ferro. 


 No prefácio, o autor destaca a imagem que possuímos de outros povos, sendo por ele considerado o que nos foi ensinado quando crianças na escola. Essa imagem foi estabelecida pelos poderes dominantes, como o Estado, a Igreja (católica e outras), o Partido e interesses privados (p. 11). A história então pode ser entendida como a história do ocidente, destacando-se alguns grandes descobrimentos, como o Humanismo, Reforma Protestante ou Modernismo. Segundo Ferro, “é necessário restaurar a verdade” (p. 14), embora o conceito de verdade em história seja muito discutível, não havendo um consenso acerca disso. São estudados os manuais didáticos e livros de história nos quatorze capítulos do livro: 


1. A História branca: Johannesbourg, a África do Sul, segundo Ferro, é considerada uma área de peregrinação, local dos Bôeres, povo que usava uma bíblia e o rifle contra o medo e solidão e após o Congresso de Viena, o colonizador bôer torna-se colonizado da Inglaterra (p. 28). Outros grupos, como os Bosquianos (considerados bárbaros) ganharam um tratamento parecido aos índios dos Estados Unidos, sendo fechados em reservas ou exterminados, os Bantos conheciam exatamente a natureza e sistema solar e os Xhosas que só migraram para a África do Sul depois do fim Monomotopa. O autor destaca que no país do extremo no continente africano, sobressaia a história branca perante a história negra. 


2. A História descolonizada: a África Negra são três as vertentes que direcionam o passado da África Negra; tradição oral, história ensinada pelo colonizador e por uma reavaliação geral. As três são construídas por grupos específicos, que moldam o conteúdo da história em conformidade aos interesses do poder, reduzido nos currículos e a contragosto de vários grupos. Destaca-se a figura de Chaka do reino Zulu, uma mistura de lenda e história (p. 35) que em seu exército utilizava de métodos espartanos na guerra e por algum motivo não comprovado, Chaka não deixou filhos e após sua morte o seu reino se afrouxou. Alguns reinos e impérios são destacados, como Gana, Mali (reino de Mansa Moussa), Songhar e Suahili. Segundo o estudo de Denise Bouche (1817-1860), somente os filhos dos franceses iam à escola e não se falavam dos gauleses, importantes personagens na história francesa. Destaca-se uma música do livro de Georges Hardy: 


“Para que a nossa África seja rica, Amigo, vamos trabalhar, trabalhar... Em vez de dormir ou conversar, vamos, Vamos limpar a terra. Antes de convidar parentes e vizinhos, Paguemos os impostos, saldemos as dívidas e coloquemos de lado uns sacos de grãos. Então, sim, poderemos cantar em voz bem alta... Salve, França, e glória ao teu nome, nós te amamos como à nossa mãe, porque é a ti que devemos o fim de todas as nossas misérias...”


 Sow Ndeye, estudante com 12 anos no momento da independência do Senegal, relata que na escola estudou personagens e o clima europeu, muito diferentes do seu país de origem. São destacados alguns pontos acerca do continente, como a África tropical ser considerada o berço da humanidade no 6º Congresso Pan Africano, na afirmação de Oumar Kane, que nos anos de 1950 e 1960 floresceu os movimentos de independência, a tendência a unificação e centralismo monárquico. Existe, segundo Ferro, comparações, como no caso do Reino de Gana e o ocidente cristão ou o poema Herekeli, que pregava a conversão dos cristãos e pagãos ao Islã (p. 48), que diferente de outras religiões, aceita a poligamia. Segundo Ferro, “desde que se trate do islã, a mão do historiador põe-se a tremer” (p. 46). 


 3. Nota da leitura sobre uma variante em Trinidad, a reação exorcista, é analisada a história construída na América Central e especialmente em Trinidad e Tobago. Nesse pequeno país, a comunidade negra é a dominante e segundo o livro Our Heritage, as índias ocidentais são habitadas por muitos povos e é afirmado que os africanos são negros, embora os negros sejam apenas um dos vários grupos que habitam a África (p. 53). Nesse e em outros livros de história, são anuladas vários conflitos e conforme os interesses locais são explorados assuntos como o petróleo e a máquina, ligados a civilização ocidental, afirmando inclusive que eles dois poderiam tirar a ilha do subdesenvolvimento que se encontrava (p. 51). 


 4. Nas Índias, a História sem identidade, inicia-se com a afirmação que os invasores da Índia se adaptaram a ela. São vários os grupos que fazem suas versões da história da Índia; as lendas purificadas, o livro de Vedas, o conto de Rama e Sita, o livro de Buda e o Hinduísmo. Outros grupos forjam suas versões, como no conflito entre os arianos do norte versus os hindus do sul que “ficaram amigos” (p. 59), a bondade de Alexandre o Grande ao rei Porus da Índia, que era “mestra” inclusive da China nos impérios Mauryas, Guptas e Harsha. Contrario a isso, Ferro afirma que o Camboja, Java e Sumatra foram tomados pela força (p. 63). Outros grupos, como os ingleses constroem suas versões, como na comparação da Índia a uma mulher e no conto do macaco e dos dois gatos e encontrava-se na “infância”, “faltando a ela força física, disciplina, sentido de organização”, além de ela favorecer os muçulmanos. O autor explora as influências da Revolução Americana e Francesa e filósofos como Rousseau, a exaltação a Gandhi, a supremacia hindu frente aos muçulmanos e a pouca importância dada ao comunismo antes da independência da Índia. 


 5. História do Islã ou História dos Árabes, a história do islã (considerado um fenômeno recente) é baseada em uma seleção de fatos e acontecimentos nos fundamentos do alcorão e no profeta Maomé. A Idade Média, segundo Ferro, possuía uma intensa relação com o islã, embora ele ignore as Cruzadas, sendo que elas junto ao imperialismo (considerados insetos parasitas que sugam o sangue) fragilizaram muito o mundo árabe. Portugal é o primeiro a fazer contato com o mundo árabe, seguido da Espanha e França. Da formação do mundo árabe e islâmico, o conjunto Árabe - Iraque é considerado o primeiro reino (p. 79), ficando nítida no Iraque a identificação com os árabes, originada segundo o autor no califa Abd El Malik El Marwan, que adotou o árabe no estado árabe islâmico ao invés de grego, copta ou persa (p. 84). A história árabe e islâmica possui os fundamentos do Ijara, sendo considerada uma licença para matar (p. 82) e segundo os manuais de história estudadas pelo autor, pouco ou nada consta sobre os Abássidas nem do massacre dos Omíadas. 


 6. Variante Persa (e Turca); no cenário árabe destaca-se o Irã, que resistiu ao Império Romano e se distancia do mundo árabe, merecendo destaque por Ferro o confronto com os árabes pela língua persa, que no Irã desde 1501 a maioria é Xiita pela dinastia dos Safávidas. O Egito, às vezes considerado líder do mundo árabe, é ao lado do Irã, de população “ariana” (p. 105). Ferro destaca também os Turcos, um povo muito orgulhoso por ter dominado os árabes, ameaçado a cristandade e pelos seus cinco séculos de império, os Hunos por só se conhecer sua história pela história dos inimigos (p. 119), o Império Otomano, considerado multinacional e tolerante e o reino de Harun Al Rashid e seu famoso conto das Mil e uma noites. 


 7. Do Cristo Rei a pátria e ao Estado: A História vista da Europa, Ferro afirma que a história produzida pelos historiadores não é a única história (p. 121), contrariamente a história contada na Europa, que possuía um elo com Roma até pelo menos o século. Na Espanha as festas celibéricas são a memória popular espontânea que acontece em vários pontos do reino espanhol, destacando-se Castela, acima de Catalunha, País Basco e Galícia (p. 124). O autor destaca alguns seguimentos em que se destacam a história de cada país; na Espanha são as festas, na Inglaterra o teatro e romance e na Alemanha o cinema, que após a derrota do nazismo a história entrou em um tabu, não apresentando ruptura entre os anos de 1933 a 1945 (p. 127). Hitler enfatizava as linhas de evolução e Lutero afirmava que a Reforma Protestante era a primeira revolução dirigida contra a opressão do estrangeiro de Roma (p. 128). Os Ingleses criam os primeiros campos de concentração na guerra com os bôeres. O ensino de história na França segundo o autor é “assassinada”, devido à concorrência que ela sofre como pelos meios de comunicação, por fim, Ferro relata a boa experiência que teve ao ver sua filha Isabelle na escola na região de Ampére, relatada por ele com uma boa aula (p. 140). 


 8. Imagens e variantes da História da URSS, na famosa frase de Nikita Krushev, “os historiadores são pessoas perigosas; são capazes de desarrumar tudo. Devem ser dirigidos” (1956), indica como é direcionada a história russa. Os varegues que fundaram o estado russo não aparecem nos livros de história, mesmo sabendo que os primeiros príncipes russos eram varegues. Tal negação segundo o autor deve-se ao fato de na Rússia existir a afirmação do desenvolvimento vir de dentro (p. 158). Na Revolução Russa, os bolcheviques assumem o poder e história em 1917, e no meio do século, o historiador da Rússia engrandece as instituições soviéticas, esconde personagens como Trotsky, Stalin e os horrores da coletivização forçada. Na história soviética, era comum a convicção a derrota do capitalismo (p. 153), embora o próprio imperialismo russo (que tinha muitas variações em sua história) fosse dependente do capitalismo ocidental. A cidade de Moscou era um “açambarcador” da terra russa e países como Bielo-Rússia e Ucrânia, que se entendia por serem povos irmãos (p. 157). No período da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e Inglaterra desconfiavam dos soviéticos (p. 172); o primeiro acreditava que os soviéticos não poderiam vencer a guerra enquanto os segundos queriam que os soviéticos lutassem contra os japoneses. A União Soviética ajudava a praticamente todos, inclusive as colônias e inicialmente foi contra o desmembramento da Alemanha nazista. 


 9. A História, Salvaguarda da identidade nacional da Armênia, destaca-se a história do pequeno país do leste europeu. No século três a Armênia se torna a primeira nação cristã, misturando a religião a sua identidade nacional. Ela é também uma nação de comerciantes, um estado vassalo entre dois impérios. Os armênios são ligados ao seu pedaço de terra (p. 202), sendo que o autor destaca que desde o século cinco eles tentam conservar sua história. Fato difícil, pois segundo Ferro, essa pequena nação sempre correu riscos e invasões, como no desejo dos turcos de eliminá-la (p. 199), a entrada da cultura grega pelo imperador Alexandre e a influência soviética na era contemporânea da Armênia, que dava a mesma história de áreas de seu domínio, como a Geórgia ou Azerbaijão (p. 179). 


 10. A História vista de perfil: a Polônia. A partir da dinastia dos Piast, considerado um embrião, funda-se o estado polonês. Em sua história coexistem várias versões, como a mostrada nos filmes Karnal (1983) e No tempo dos Suecos, a matriz marxista na história oficial (que deveria formar bons cidadãos) e a batalha de Grunewald, no qual ocorre a derrota dos cavaleiros teutônicos, simbolizando a vitória polonesa (conhecidos também como povos eslavos) contra os alemães. Nos livros de história da Polônia, são destacados personagens como o cientista polonês Nicolau Copérnico (p. 211). Pouco se explora a parte leste da Polônia, devido à ocupação soviética (p. 209). O autor destaca a teoria dos dois inimigos (nazistas e soviéticos) e também é ressaltada a ocidentalização da Polônia pelas influências da Igreja e de Roma. 11. Nota sobre as incertezas da História da China. Nos manuais de história do império chinês, afirma-se que ela criou sua própria cultura (p. 222), afirmado como nas ideias do “salto para frente”, assim como na invenção da seda, papel, bussola etc. O ensino de história é concentrado apenas no território chinês, isso se considerando a difícil unificação desses estudos em um país que teve mais de quatro décadas de guerra civil. Desconsidera-se, por exemplo, as diferenças entre Taipei e a China e os mais de dois milênios de duração do feudalismo na China. 


 12. A História do Japão: um código ou uma ideologia? Os monarcas japoneses, segundo aponta Ferro, eram descendentes dos deuses, que reforça a ideia que o Japão é criado, governado e protegido pelos deuses (p. 256), junto com a China é considerado como o país do arroz, protetor da Ásia, em sua antiga história. No século quinze, destaca-se a época dos grandes guerreiros (posteriormente explorado pelo cinema). O Estado-Família, que segundo Ferro só acontecia no Japão, é baseada na ideia da nação ser uma imensa família, onde o imperador é o pai. Até o começo da década de 1940, havia poucos livros da história do Japão e nessa época era comum a admiração a Alemanha (nazista) e criticas a cidades como Xangai, Londres e Cairo. Um bonito poema (p. 243), do ministro da direita japonesa, Michizanê, é apresentado, na sua retirada do partido: 
Quando soprar o vento, Flores de ameixeira, 
vocês se lembrarão? 
Mesmo se eu não estiver, 
Não se esqueçam da primavera. 

13. A História “branca” em demolição: os Estados Unidos. O autor aponta como os Estados Unidos ignoram o mundo exterior (o primeiro livro de história foi lançado em 1823) e direcionam sua própria história, como ao afirmarem que o catolicismo e o espanhol serem o fracasso da América. A divisão da história estadunidense era dividida em cinco períodos e pouco se explorava eventos, como a Guerra da Secessão (visando unir a nação). Os meios de comunicação possuem grande influência, como o filme Nascimento de uma nação (1915), E o vento levou (1939), pois reforçam a ideia do “bom negro”, sempre representado como servidor doméstico. A criação da décima terceira emenda tornava o negro um não escravo, embora continuasse a ser um não cidadão, havia, portanto, separação e não igualdade (p. 273). Nessa conjuntura, destaca-se o papel de Martim Luther King (atuante e líder do movimento de massa de boicote) e os revolucionários Panteras Negras. Outros grupos também são estereotipados, como a associação entre os comunistas ao personagem Robin Wood, o irlandês emigrado (chamado de Paddy) sempre representado como briguento e barulhento e sua “rivalidade” com os negros pelos empregos. 


14. Nota e leitura sobre a História “proibida”, Mexicanos-Americanos, aborígenes da Austrália. A visão dos vencidos, segundo Ferro, foi desenvolvida por Nathan Wachtel com os índios do Peru (p. 282). O desaparecimento de quase três quartos dos índios, não possui menção nos livros de história dos Estados Unidos. A própria história mexicana era sempre ligada com a estadunidense, negando a história dos povos chicanos (chamados de méxico-americanos ou Raza). Ferro destaca a história dos índios dos Estados Unidos (p. 285): 


(...) No começo tudo estava na escuridão. Os espíritos haviam criado as pessoas e os rios, as cavernas, os rochedos e todas as coisas que vivem. Deram a cada clã sua terra, seu totem, seus sonhos. (...) Nem as pessoas, nem os pássaros, nem os animais podiam ver porque não existia luz e cada um ficava onde estivesse, sem se mover. Um dia, todos os animais se reuniram e disseram: “É preciso fazer alguma coisa para que a luz apareça”. Conversaram, conversaram, mas não aconteceu nada. Até que enfim a rã disse que poderia fazer vir o sol graças a um cântico mágico. (...) 


 Os índios australianos ou aborígenes possuem uma situação em paralelo com os nativos do México e Estados Unidos, iniciando o contato com a Europa nas viagens de James Cook em 1770. Segundo Julio Verne, os aborígenes da Austrália possuem sua história, conservada pela tradição oral (p. 284). Segundo os relatos dos aborígenes australianos, os grandes navios (dos colonizadores ingleses) eram “grandes pássaros que flutuavam no mar”, “ensinavam a palavra de Deus” e em seus relatos, suas “crianças iam à escola”, além de nos mesmo relatos os aborígenes afirmavam que “nossas pegadas serão desfeitas pelo vento”


 Na conclusão, Marc Ferro que o espelho quebrou pela miragem da História, afirma que a memória das sociedades pode ser considerada como uma segunda fonte, o marxismo que pode ser usado pelos interesses e manipulações dos modos de produção, como nas variantes da União Soviética e China e a contribuição dos Annales com as novas bases de pesquisa. 


Em suma, uma importante obra que transita por campos como a história, geografia e política, buscando analisar os conjuntos e modelos de história que são explorados por determinados grupos específicos, que proporcionam uma visão da história que se não traz na sua essência a cientificidade e seriedade necessárias, trazem uma história que ao valorizar determinados pontos de vista, e que Marc Ferro, em sua conhecida obra, explora brilhantemente.

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