domingo, 22 de abril de 2012

Resenha: MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. São Paulo: EDUSC. 2007.





São Paulo está muito maltratada. É muito cimento. Essa cidade já perdeu todo o sentido: noites boas, boas amizades, ambientes bons. Pode parecer coisa de velho ficar lembrando o passado, mas aqui a gente podia ir a qual lugar com a patroa, a namorada ou a irmã e sempre encontrava respeito. Mas São Paulo sempre resiste, apesar de tudo.
Adoniran Barbosa


A AUTORA
Maria Izilda Santos de Matos é Mestre e Doutora pela Universidade de São Paulo (USP), professora das faculdades Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mackenzie.[1] Autora de vários livros[2] e estudos sobre o cotidiano, gênero e da cidade de São Paulo.

A OBRA
Dividida em três partes, a obra é prefaciada pela professora Dra. Yvone Dias Avelino[3], que apresenta a teia de relações da obra de Matos, como as tensões, o criar e recriar paisagens (inclusive sonoras), tensões, disputas, sensibilidades e representações da década de 1950, chamada da década dos anos dourados. Na apresentação da obra, a autora fala da pesquisa que originou essa obra, do aprendizado no processo de realização do trabalho (que durou uma década) e das inquietações e questionamentos.

No primeiro capítulo, Matos esclarece sobre as mudanças que a história passou como ocasionado pela crise dos paradigmas, que fez com que a história se abrisse para novas formas de pesquisa[4], como nas transformações da sociedade, funcionamento da família, papel da disciplina e mulheres, fatos, corpos[5], gestos e sensibilidades, entendido como tempo de mudanças e permanências. A autora afirma que “grande parte dos segredos está encoberto por evidências inexploradas ”.[6] Nisso, a cidade (com sua praça, rua, bairro e praia) que antes era um palco da história entra como um campo de tensão, observado nos discursos médico e político, ela também pode ser entendida como um território de múltiplas experiências sensoriais e de paisagens sonoras, nos sons da urbe em movimento. A autora levanta questões, como a falta de observação das tensões e noções do privado e público, a relação entre o pessoal e o político, a experiência, permanência, os poucos estudos da produção musical, vivenciadas de formas diferentes:
Para além dessas dimensões o corpo desenvolve percepções e sensoriedades (visão, olfato, tato, audição, gustação), canais culturais de comunicação (movimentos, expressões, gestos, linguagens), usos e práticas e sensibilidades (dor, esperança, amor, saudades etc.), que tornam o corpo uma âncora de emoções, com formas, necessidades, funções físicas, sensações e sensibilidades reconhecidas como habitus[7].

Apesar do ponto de vista medieval de que a noite não era bem vista e que deveria ser reservada ao descanso, permanecia viva apesar das mudanças na esfera paulista. A boemia, não entendida como um todo fechado, se mescla com a noite paulistana, que tinha regras diferentes do período diurno.[8]

Na segunda parte da obra a autora apresenta alguns dados, como as inúmeras transformações do século passado, a mudança da maioria da população mundial dos campos para cidades como São Paulo. A clássica divisão da história paulista em quatro períodos[9] serve de referência quanto às mudanças, como a representação do desbravamento das fronteiras pelas bandeiras, os trilhos de trem que cortaram a cidade no sentido sudeste - noroeste, considerados como um vetor modernizador num processo que normalmente era mais espontâneo que organizado. A cidade ganha feições em seus bairros: na zona leste ficam as partes mais baixas, úmidas e pantanosas, no centro novo um acanhado burgo onde se encontra a Academia de Direito no Largo São Francisco, os bairros operários como Mooca, Brás, Pari, Belém, Tatuapé, Bom Retiro, Barra Funda, Água Branca e Lapa, a Praça da Sé em sua demorada remodelação. O embelezamento da cidade começa por volta de 1910 com a proposta de criar um centro moderno (eliminando os indesejáveis dessas áreas). As transformações são múltiplas em um curto espaço de tempo e o surto cafeeiro aumenta sensivelmente a população paulista, sendo que as indústrias são criadas a sombra dos cafezais. A Primeira Guerra Mundial bloqueou a alta rotatividade dos operários e por outro lado, possibilitou o uso de todo potencial da indústria paulista e frente a essas mudanças, o patronato também se organiza, assim como alguns trabalhadores optaram por trabalhos como o não assalariado. Nos pequenos comércios o que importa é cativar clientes, destacando o papel das mulheres. A rotina de trabalhadores era muito árdua, com constantes informações de abusos de seus patrões. Em 1920 começa a verticalização do centro novo, nas décadas de 1930 a 1940 a cidade do café industrializa-se, na década de 1950 ela cresce vertiginosamente (impulsionada no governo industrial de Juscelino Kubitschek), como entendido na ideia “da cidade de um edifício por hora”, são criados vários departamentos, como cultura, higiene, esportes, saúde, fazenda etc. O “plano avenidas” vira um símbolo, são criados também novas lojas, galerias, faculdades, cinemas, teatros etc, gerando transformações culturais, resistência e inconformismo, sendo que a autora aponta para mais de três milhões de pessoas que viviam em profundo contraste a essas mudanças, como as duas centenas de famílias retiradas da região que seria transformada no parque do Ibirapuera. Em 1951 é criada a comissão responsável pela organização da celebração do 4º Centenário da cidade, em 1954 na celebração é inventada a “paulistaneidade” [10]. É difundida a ideia do progresso vinculada a trabalho e produtividade. Na inauguração da Estação da Luz, considerada a segunda fundação da cidade, na busca do moderno o coração é o centro:
O coração de São Paulo pulsa os sons do punk rock e do hip-hop (cuja prática na estação de metrô São Bento ajudou na juventude marginalizada da periferia a buscar sua identidade), dos congestionamentos, das buzinas a esmo, da tensão da espera, dos resmungos e da impaciência.[11]

Na névoa e luz dos lampiões, ocorria no centro modernizante à vida agitada e noturna; lazer, teatro, bordéis, bares, cinemas, bibliotecas e casarões freqüentados por artistas, advogados, jornalistas, intelectuais, médicos e operários, em meio à conjuntura da esperança no pós-guerra[12], as mudanças no país e o Estado Novo. O centro apresentava melhoramentos, mas expulsava os populares para a periferia, como observado na região da Rua dos Andradas, Gusmões e Vitória (prostituição) e Praça da República e Largo do Arouche (homossexuais), tendo nisso muitas representações.[13]

A terceira e última parte da obra inicia na era de ouro do rádio (entre 1930-1950). Um meio muito popular de comunicação, que veiculava jornais, novelas, esporte, programas humorísticos, religião etc, além de novos tipos de samba e músicas internacionais[14] (destaque para a Rádio Record e seu engajamento para a Revolução Constitucionalista de 1932). O carnaval é institucionalizado pelo estado em 1930. A autora apresenta Adoniran Barbosa, nascido em 1910 em meio à cultura italiana, inicialmente atuando como varredor, tecelão, pintor, encanador, balconista, garçom entre outras funções. Fez sucesso com programas de humor no rádio; o programa Histórias da Maloca ficou 10 anos no ar (1953-1963). Adoniran Barbosa possuía muita afinidade com camadas populares, o que explica boa parte de seu sucesso. Em 1957 estreou na televisão, mas sem sucesso, participou também de filmes, como Candinho (1954) atuando junto com Mazzaropi. Sua última aparição foi em 1982, em um festival de música no Rio de Janeiro. Fez também sucesso com músicas como Saudosa maloca (1951) que representava tensões do cotidiano, Trem das onze (1964) possivelmente foi a música de maior repercussão, fez músicas polêmicas e censuradas como Aqui Gerarda (1959). Apesar da longa carreira só gravou seu primeiro LP aos 64 anos de idade e 39 de carreira[15]. Em sua vivência cotidiana, Adoniran Barbosa sentia as sensibilidades ao caminhar, conversar, ouvir, interagir e atentar sobre o seu mundo: músicas como Praça da Sé e Viaduto Santa Efigênia nos mostram as tensões da época, assim como o cotidiano dos homens e mulheres de suas apresentações;
[...] O que nas canções também permite é questionar as afirmações de que todos se incorporam à modernidade, destacando as múltiplas tensões, subjetivações, apropriações, reapropriações, desvios e recriações que fazem parte desse processo.[16]

Nas considerações finais, Matos destaca que na cidade convivem solidariedades, conflitos, tensões sem identidade única e construção de movimentos sociais. As canções, como de Adoniran Barbosa, rastreiam a cidade e ele ao contrário das mudanças que São Paulo recebia, não acabava com a cidade:
Adoniran foi generoso o suficiente para expor as sensações, foi revelador de sentimentos e sensibilidades, testemunha das emoções e depositário da memória. Fez, também, irreverente e provocativo discurso da denúncia, estabelecendo uma cumplicidade entre seus ouvintes.[17]

Em suma, esse estudo de Maria Izilda Santos de Matos explora de forma muito minuciosa e rica, a visão de mundo de pessoas e grupos que antes e por motivos muito variáveis, possuíam sobre uma São Paulo em transformação, apresentando e comparando dois principais pontos, por um lado o discurso de uma cidade que cresce apontando para o progresso e convívio harmonioso, e o outro discurso, observado no cotidiano, como nas próprias músicas que Adoniran cantava, apresentando as aventuras noturnas dos povos paulistas, nas muitas manifestações existentes entre aqueles que pouco aparecia nos discursos. A obra, assim como afirmou Yvone Avelino, possui um papel de destaque na história da cidade de São Paulo, pois traz a tona vozes que antes não eram estudadas, abrindo caminho quanto a uma história de outras esferas, de lugares, épocas e sujeitos.


BIBLIOGRAFIA

● BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: editora da UNESP. 1992.
HISTÓRIA VIVA; GRANDES TEMAS. Nº 7. São Paulo: Duetto. 2010.
MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. São Paulo: EDUSC. 2007.
______. Âncora de Emoções: Corpos, subjetividades e sensibilidades. São Paulo: EDUSC. 2005.
PERSON, Eliane. O traço e a trama dos anos 50 por Carlos Estevão. Dissertação de Mestrado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2011.
SOLLER, Maria Angélica; MATOS, Maria Izilda Santos de (orgs.). O Imaginário em debate. São Paulo: Olho d’água. 1998.


[1] Disponível em: < http://lattes.cnpq.br/3818957885297532 >. Acessado em: 3.9.2011.
[2] História e Deslocamentos: os portugueses (2008); Ancora de Emoções (2005), Gênero e Terceiro Setor (2005), Dolores Duran: Experiências Boêmias em Copacabana nos anos 50 (2002), Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho (2002), Meu lar é o botequim (2002), Por uma história das mulheres (2000), Melodia e Sintonia: o masculino, o feminino e suas relações em Lupicínio Rodrigues (1999), A Cidade em debate (1999), O imaginário em debate (1998).
[3] Disponível em: < http://lattes.cnpq.br/5274413688512181 >. Acessado em: 3.9.2011.
[4] Como afirma Burke, essa expansão se dá a uma velocidade vertiginosa. BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: editora da UNESP. 1992. p. 7.
[5] MATOS, Maria Izilda de Santos. Âncora de Emoções: Corpos, subjetividades e sensibilidades. São Paulo: EDUSC. 2005.
[6] MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. São Paulo: EDUSC. 2007. p. 21.
[7] MATOS, Maria Izilda Santos de. Op cit. p. 35.
[8] SOLLER, Maria Angélica; MATOS, Maria Izilda Santos de (orgs.). O Imaginário em debate. São Paulo: Olho d’água. 1998. p. 89.
[9] A fundação da vila (1554), a Cidade do café (1870), a Metrópole industrial (1920) e Megalópole (2000). MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit. p. 44.
[10] Por paulistaneidade pode-se entender as representações e discursos de São Paulo como a maior cidade do Brasil, terra de destemidos bandeirantes, a cidade como o vagão que puxa o Brasil etc.
[11] MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit. p. 89.
[12] MIQUEL, Pierre. Euforia e incerteza. In: HISTÓRIA VIVA, GRANDES TEMAS. Nº 7. São Paulo: Duetto. 2010. p. 7-11.
[13] PERSON, Eliane. O traço e a trama dos anos 50 por Carlos Estevão. Dissertação de Mestrado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2011. p. 38.
[14] SOLLER, Maria Angélica; MATOS, Maria Izilda Santos de (orgs.). O Imaginário em debate. São Paulo: Olho d’água. 1998. p. 30.
[15] MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. São Paulo: EDUSC. 2007. p. 138.
[16] MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit. p. 154.
[17] MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit. p. 165.

Um comentário:

  1. Olá, achei este site muito interessante. Estou agora na tarefa de desenvolver uma resenha acadêmica de um livro de 268 páginas, dividido entre 14 capítulos (que abordam 7 temáticas principais, mas não necessariamente 1 assunto a cada 2 capítulos), de aproximadamente 18 páginas cada um. Até agora fiz a resenha de 4 capítulos e mesmo tentando seguir o modelo apresentado aqui já escrevi duas páginas. Digamos que minha resenha completa do livro ocupe 6 ou 7 páginas, esta quantidade é aceitável do ponto de vista do gênero textual ou devo ser mais sintético e tentar reescrevê-la? muito obrigado.

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