São Paulo está muito maltratada. É muito cimento. Essa cidade já perdeu todo o sentido: noites boas, boas amizades, ambientes bons. Pode parecer coisa de velho ficar lembrando o passado, mas aqui a gente podia ir a qual lugar com a patroa, a namorada ou a irmã e sempre encontrava respeito. Mas São Paulo sempre resiste, apesar de tudo.
Adoniran Barbosa
A AUTORA
Maria Izilda
Santos de Matos é Mestre e Doutora pela Universidade de São Paulo (USP),
professora das faculdades Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) e Mackenzie.[1]
Autora de vários livros[2]
e estudos sobre o cotidiano, gênero e da cidade de São Paulo.
A OBRA
Dividida em três
partes, a obra é prefaciada pela professora Dra. Yvone Dias Avelino[3],
que apresenta a teia de relações da obra de Matos, como as tensões, o criar e
recriar paisagens (inclusive sonoras), tensões, disputas, sensibilidades e
representações da década de 1950, chamada da década dos anos dourados. Na
apresentação da obra, a autora fala da pesquisa que originou essa obra, do
aprendizado no processo de realização do trabalho (que durou uma década) e das
inquietações e questionamentos.
No primeiro
capítulo, Matos esclarece sobre as mudanças que a história passou como
ocasionado pela crise dos paradigmas, que fez com que a história se abrisse
para novas formas de pesquisa[4],
como nas transformações da sociedade, funcionamento da família, papel da
disciplina e mulheres, fatos, corpos[5],
gestos e sensibilidades, entendido como tempo de mudanças e permanências. A
autora afirma que “grande parte dos
segredos está encoberto por evidências inexploradas ”.[6]
Nisso, a cidade (com sua praça, rua, bairro e praia) que antes era um palco da
história entra como um campo de tensão, observado nos discursos médico e
político, ela também pode ser entendida como um território de múltiplas
experiências sensoriais e de paisagens sonoras, nos sons da urbe em movimento.
A autora levanta questões, como a falta de observação das tensões e noções do
privado e público, a relação entre o pessoal e o político, a experiência,
permanência, os poucos estudos da produção musical, vivenciadas de formas
diferentes:
Para além dessas
dimensões o corpo desenvolve percepções e sensoriedades (visão, olfato, tato,
audição, gustação), canais culturais de comunicação (movimentos, expressões,
gestos, linguagens), usos e práticas e sensibilidades (dor, esperança, amor,
saudades etc.), que tornam o corpo uma âncora de emoções, com formas,
necessidades, funções físicas, sensações e sensibilidades reconhecidas como habitus[7].
Apesar do
ponto de vista medieval de que a noite não era bem vista e que deveria ser
reservada ao descanso, permanecia viva apesar das mudanças na esfera paulista.
A boemia, não entendida como um todo fechado, se mescla com a noite paulistana,
que tinha regras diferentes do período diurno.[8]
Na segunda
parte da obra a autora apresenta alguns dados, como as inúmeras transformações
do século passado, a mudança da maioria da população mundial dos campos para
cidades como São Paulo. A clássica divisão da história paulista em quatro
períodos[9]
serve de referência quanto às mudanças, como a representação do desbravamento
das fronteiras pelas bandeiras, os trilhos de trem que cortaram a cidade no
sentido sudeste - noroeste, considerados como um vetor modernizador num
processo que normalmente era mais espontâneo que organizado. A cidade ganha
feições em seus bairros: na zona leste ficam as partes mais baixas, úmidas e
pantanosas, no centro novo um acanhado burgo onde se encontra a Academia de
Direito no Largo São Francisco, os bairros operários como Mooca, Brás, Pari,
Belém, Tatuapé, Bom Retiro, Barra Funda, Água Branca e Lapa, a Praça da Sé em
sua demorada remodelação. O embelezamento da cidade começa por volta de 1910 com a proposta de criar um centro
moderno (eliminando os indesejáveis dessas áreas). As transformações são
múltiplas em um curto espaço de tempo e o surto cafeeiro aumenta sensivelmente
a população paulista, sendo que as indústrias são criadas a sombra dos cafezais.
A Primeira Guerra Mundial bloqueou a alta rotatividade dos operários e por
outro lado, possibilitou o uso de todo potencial da indústria paulista e frente
a essas mudanças, o patronato também se organiza, assim como alguns
trabalhadores optaram por trabalhos como o não assalariado. Nos pequenos
comércios o que importa é cativar clientes, destacando o papel das mulheres. A
rotina de trabalhadores era muito árdua, com constantes informações de abusos
de seus patrões. Em 1920 começa a verticalização do centro novo, nas décadas de
1930 a 1940 a cidade do café industrializa-se, na década de 1950 ela cresce
vertiginosamente (impulsionada no governo industrial de Juscelino Kubitschek),
como entendido na ideia “da cidade de um
edifício por hora”, são criados vários departamentos, como cultura,
higiene, esportes, saúde, fazenda etc. O “plano avenidas” vira um símbolo, são
criados também novas lojas, galerias, faculdades, cinemas, teatros etc, gerando
transformações culturais, resistência e inconformismo, sendo que a autora
aponta para mais de três milhões de pessoas que viviam em profundo contraste a
essas mudanças, como as duas centenas de famílias retiradas da região que seria
transformada no parque do Ibirapuera. Em 1951 é criada a comissão responsável
pela organização da celebração do 4º Centenário da cidade, em 1954 na celebração
é inventada a “paulistaneidade” [10].
É difundida a ideia do progresso vinculada a trabalho e produtividade. Na
inauguração da Estação da Luz, considerada a segunda fundação da cidade, na
busca do moderno o coração é o centro:
O coração de São Paulo
pulsa os sons do punk rock e do hip-hop (cuja prática na estação de
metrô São Bento ajudou na juventude marginalizada da periferia a buscar sua
identidade), dos congestionamentos, das buzinas a esmo, da tensão da espera,
dos resmungos e da impaciência.[11]
Na névoa e luz
dos lampiões, ocorria no centro modernizante à vida agitada e noturna; lazer,
teatro, bordéis, bares, cinemas, bibliotecas e casarões freqüentados por
artistas, advogados, jornalistas, intelectuais, médicos e operários, em meio à
conjuntura da esperança no pós-guerra[12],
as mudanças no país e o Estado Novo. O centro apresentava melhoramentos, mas
expulsava os populares para a periferia, como observado na região da Rua dos
Andradas, Gusmões e Vitória (prostituição) e Praça da República e Largo do
Arouche (homossexuais), tendo nisso muitas representações.[13]
A terceira e
última parte da obra inicia na era de ouro do rádio (entre 1930-1950). Um meio
muito popular de comunicação, que veiculava jornais, novelas, esporte,
programas humorísticos, religião etc, além de novos tipos de samba e músicas
internacionais[14]
(destaque para a Rádio Record e seu engajamento para a Revolução
Constitucionalista de 1932). O carnaval é institucionalizado pelo estado em
1930. A autora apresenta Adoniran Barbosa, nascido em 1910 em meio à cultura
italiana, inicialmente atuando como varredor, tecelão, pintor, encanador,
balconista, garçom entre outras funções. Fez sucesso com programas de humor no
rádio; o programa Histórias da Maloca
ficou 10 anos no ar (1953-1963). Adoniran Barbosa possuía muita afinidade com
camadas populares, o que explica boa parte de seu sucesso. Em 1957 estreou na televisão,
mas sem sucesso, participou também de filmes, como Candinho (1954) atuando
junto com Mazzaropi. Sua última aparição foi em 1982, em um festival de música
no Rio de Janeiro. Fez também sucesso com músicas como Saudosa maloca (1951) que representava tensões do cotidiano, Trem das onze (1964) possivelmente foi a
música de maior repercussão, fez músicas polêmicas e censuradas como Aqui Gerarda (1959). Apesar da longa
carreira só gravou seu primeiro LP aos 64 anos de idade e 39 de carreira[15].
Em sua vivência cotidiana, Adoniran Barbosa sentia as sensibilidades ao
caminhar, conversar, ouvir, interagir e atentar sobre o seu mundo: músicas como
Praça da Sé e Viaduto Santa Efigênia nos mostram as tensões da época, assim como
o cotidiano dos homens e mulheres de suas apresentações;
[...] O que nas canções
também permite é questionar as afirmações de que todos se incorporam à
modernidade, destacando as múltiplas tensões, subjetivações, apropriações,
reapropriações, desvios e recriações que fazem parte desse processo.[16]
Nas
considerações finais, Matos destaca que na cidade convivem solidariedades,
conflitos, tensões sem identidade única e construção de movimentos sociais. As
canções, como de Adoniran Barbosa, rastreiam a cidade e ele ao contrário das
mudanças que São Paulo recebia, não acabava com a cidade:
Adoniran foi generoso o
suficiente para expor as sensações, foi revelador de sentimentos e sensibilidades,
testemunha das emoções e depositário da memória. Fez, também, irreverente e
provocativo discurso da denúncia, estabelecendo uma cumplicidade entre seus
ouvintes.[17]
Em suma, esse
estudo de Maria Izilda Santos de Matos explora de forma muito minuciosa e rica,
a visão de mundo de pessoas e grupos que antes e por motivos muito variáveis, possuíam
sobre uma São Paulo em transformação, apresentando e comparando dois principais
pontos, por um lado o discurso de uma cidade que cresce apontando para o
progresso e convívio harmonioso, e o outro discurso, observado no cotidiano,
como nas próprias músicas que Adoniran cantava, apresentando as aventuras
noturnas dos povos paulistas, nas muitas manifestações existentes entre aqueles
que pouco aparecia nos discursos. A obra, assim como afirmou Yvone Avelino,
possui um papel de destaque na história da cidade de São Paulo, pois traz a
tona vozes que antes não eram estudadas, abrindo caminho quanto a uma história
de outras esferas, de lugares, épocas e sujeitos.
BIBLIOGRAFIA
● BURKE,
Peter. A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda
Lopes. São Paulo: editora da UNESP. 1992.
● HISTÓRIA
VIVA; GRANDES TEMAS. Nº 7. São
Paulo: Duetto. 2010.
● MATOS,
Maria Izilda Santos de. A cidade, a
noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. São Paulo: EDUSC. 2007.
● ______. Âncora de Emoções: Corpos,
subjetividades e sensibilidades. São Paulo: EDUSC. 2005.
● PERSON,
Eliane. O traço e a trama dos anos 50
por Carlos Estevão. Dissertação de Mestrado em História. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. 2011.
● SOLLER,
Maria Angélica; MATOS, Maria Izilda Santos de (orgs.). O Imaginário em debate. São Paulo: Olho d’água. 1998.
[1] Disponível em: < http://lattes.cnpq.br/3818957885297532 >.
Acessado em: 3.9.2011.
[2] História e Deslocamentos: os portugueses (2008); Ancora
de Emoções (2005), Gênero e Terceiro
Setor (2005), Dolores Duran:
Experiências Boêmias em Copacabana nos anos 50 (2002), Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho (2002), Meu lar é o botequim (2002), Por uma história das mulheres (2000), Melodia e Sintonia: o masculino, o
feminino e suas relações em Lupicínio Rodrigues (1999), A Cidade em debate (1999), O
imaginário em debate (1998).
[3] Disponível em: < http://lattes.cnpq.br/5274413688512181
>. Acessado em: 3.9.2011.
[4] Como afirma Burke, essa expansão se dá a
uma velocidade vertiginosa. BURKE, Peter (org.). A escrita da história:
novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: editora da UNESP. 1992.
p. 7.
[5] MATOS, Maria Izilda de Santos. Âncora de
Emoções: Corpos, subjetividades e sensibilidades. São Paulo: EDUSC.
2005.
[6] MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista:
São Paulo e Adoniran Barbosa. São Paulo: EDUSC. 2007. p. 21.
[7] MATOS, Maria Izilda Santos de. Op cit. p. 35.
[8]
SOLLER, Maria Angélica; MATOS,
Maria Izilda Santos de (orgs.). O
Imaginário em debate. São Paulo: Olho d’água. 1998. p. 89.
[9]
A fundação da vila (1554), a
Cidade do café (1870), a Metrópole industrial (1920) e Megalópole (2000). MATOS,
Maria Izilda Santos de. Op. cit. p. 44.
[10]
Por paulistaneidade pode-se
entender as representações e discursos de São Paulo como a maior cidade do
Brasil, terra de destemidos bandeirantes, a cidade como o vagão que puxa o
Brasil etc.
[11]
MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit. p. 89.
[12]
MIQUEL, Pierre. Euforia e incerteza. In: HISTÓRIA VIVA,
GRANDES TEMAS. Nº 7. São Paulo: Duetto. 2010. p. 7-11.
[13]
PERSON, Eliane. O traço e a trama dos anos 50 por Carlos
Estevão. Dissertação de Mestrado em História. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. 2011. p. 38.
[14]
SOLLER, Maria Angélica; MATOS,
Maria Izilda Santos de (orgs.). O
Imaginário em debate. São Paulo: Olho d’água. 1998. p. 30.
[15]
MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São
Paulo e Adoniran Barbosa. São Paulo: EDUSC. 2007. p. 138.
[16]
MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit. p. 154.
[17]
MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit. p. 165.
Olá, achei este site muito interessante. Estou agora na tarefa de desenvolver uma resenha acadêmica de um livro de 268 páginas, dividido entre 14 capítulos (que abordam 7 temáticas principais, mas não necessariamente 1 assunto a cada 2 capítulos), de aproximadamente 18 páginas cada um. Até agora fiz a resenha de 4 capítulos e mesmo tentando seguir o modelo apresentado aqui já escrevi duas páginas. Digamos que minha resenha completa do livro ocupe 6 ou 7 páginas, esta quantidade é aceitável do ponto de vista do gênero textual ou devo ser mais sintético e tentar reescrevê-la? muito obrigado.
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